"(...) Logo no corredor que dá acesso aos quartos das crianças em estado grave, sentada numa cadeirinha infantil que alguém esqueceu por ali, uma senhora chora, sem desespero, copiosamente. A palhaça da dupla senta ao seu lado em outra cadeirinha igualmente esquecida, e delicadamente lhe estende a mão. Ficam ali, as duas. Uma mulher que chora e uma palhaça que lhe dá a mão. Não tenho mais a noção de quanto tempo se passa: não sei dizer se ficamos dez ou quarenta minutos ali, sem dizer palavra; as duas, eu e o outro palhaço que também, nesse momento, apenas observa. (...) Noto o rosto da palhaça. Ele está sério, sem peso, mas concentrado. O palhaço de hospital também atua quando não faz rir e nós compreendemos isso, simplesmente, numa situação como esta. O palhaço, no contexto hospitalar, pode trazer para alguém toda a beleza e esperança de se estar vivo e presente, mas também lembra toda a fragilidade e inconstância de ser humano. Descubro que o silêncio do palhaço é porque quando não há nada a fazer, não fazemos nada. Mas podemos esperar juntos por um momento em que as coisas estejam melhores. Estou cansada, quero ir embora para casa, mas permaneço ainda mais um pouco para observar uma última ação dos palhaços. Estão no quarto, a mãe, a tia e um amigo da família que apresenta dificuldades de locomoção. A menina deitada, de olhos fechados, deve ter aproximadamente dez anos. Parece tranqüila. Chama-se Joyce. Recuo da porta, para não invadir o ambiente com a minha presença, e espero no corredor. Os dois palhaços que observo avançam e entram, mas a porta fica aberta. Eu só escuto o silêncio. Não dá para ter a mínima idéia do que se passa lá dentro. De repente, o som da flauta da palhaça que toca a música de Caetano Veloso, Luz do Sol “que a folha traga e traduz, em verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz”. Os palhaços saem, entram em outro quarto, mas não os sigo. Quero ficar ali, esperar alguma reação de dentro da nuvenzinha silenciosa onde descansa o anjinho Joyce. Um médico e dois enfermeiros entram no quarto. Fico na dúvida se Joyce já terá voado. Permaneço no corredor, e critico meu voyeurismo. Sou uma professora, penso para me compensar, preciso saber o que acontece depois da passagem dos palhaços, o que resta da relação que se estabeleceu entre eles, o que cada um leva para si e para sempre. Os homens de branco saem. Silêncio. Ainda silêncio. Não me movo do lugar. Mas também não quero ficar lá muito mais tempo, parada no meio do corredor, onde transitam macas, aparelhos grandes e estranhos, médicos apreensivos. Não quero atrapalhar nada. Tomo a direção da saída, e já perdida dos palhaços, enquanto espero o elevador, ouço novamente a melodia da música de Caetano, desta vez pelo assovio de alguém. Num impulso, volto correndo à porta do quarto de Joyce. Vem de lá o som. E num mísero e pequenino instante, nesse passageiro e efêmero momento, experimento uma sensação madura e material de que, enfim, e não no fim, a vida pode aceitar a morte.
Entre nove da manhã e cinco da tarde
Quatro graus lá fora."
Ana Achcar Paris, 27 de fevereiro de 2003. Visita de observação do trabalho do Le Rire Medecin no Institut Gustave Roissy
2 comentários:
Se alguém souber como formatar esse texto, que o faça. Eu desisti!
Formatei... só não sabia se tinha (e onde tinha) quebra de linha!
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